quarta-feira, 11 de julho de 2012

TEMA DA SEMANA: CAUSO E CONTOS ANTIGOS DO SERIDÓ: O FOGO DA FAZENDA PEDREIRA, BANDO DE ANTONIO SILVINO EM CAICÓ

 
Os primeiros sinais luminosos do sol raiando anunciam mais um dia no sertão do seridó, região semi-árida da caatinga nordestina.O local não está tão distante do planalto da Borborema, embora se localize entre grutas e serrotes nas proximidades do rio Barra Nova que desagua no rio Assú-piranhas.
 
antonio silvino e seu bando

Pedreira é uma fazenda de criação e gado e atividade agrícola com várias centenas de hectares de terra e, como o próprio nome sugere, está encravada em meio a um cinturão de rochas e mata fechada de cactus, mandacarus e Xique-Xique e outros tipos de vegetação como a Aroeira, a jurema, e a quixabeira, simbolizando o que mais de exótico possa parecer, como a pintura de desenhos rupestres e uma fauna sui generis adequada a esta flora típica da região.

O lugar homônimo é este, um verdadeiro oásis de pedras e cipós capitaneando por uma singular monotonia onde não se percebe a presença de pessoas, a não ser umas e outras criaturas que trafegam em veredas sinalizadas por rastros de animais ao som da música estridente das cigarras em pleno meio-dia de um sol causticante ou dos maracás das serpentes e de cobra cascavel.
Fazendeiros-coronéis articulavam capangas perigosos e bandos de cangaceiros se formavam à revelia como que à procura de um motivo fútil de se rebelar contra a mira de quem o traísse ou até como meio de vingança, de fazer justiça com as próprias mãos.
O sol brilhava radiante. No curral, o gado esperava em fila para ser tangido a sua pastagem natural. Uma rês havia sido abatida e o couro já estava sendo esticado. Na latada, ao lado da casa-grande, um homem esquartejava aquele animal de aproximadamente 15 arrobas. No engenho mais homens a conversar e a fazer não sei o quê pois sequer havia vestígio do melaço de cana-de-açúcar de safras anteriores.
O dono da fazenda não se sabe, mas ninguém o viu. Tudo parecia crer, seria um dia como qualquer outro, apesar daquela sutil movimentação não tão habitual assim.

 
oficiais da força volante

De repente, um grito. Um eco ressoou em volta e todos escutaram atentos:
" Oiá os macacos "!

A ordem era do líder do grupo e cangaceiro Antônio Silvino, da Paraíba, e macacos eram soldados comandados por um sargento  de polícia da cidade de Santa  Luzia, também do vizinho estado paraibano.
A fazenda Pedreira estava distante cerca de 40 kilômetros do destacamento policial, embora fosse localizada no município de Caicó e os cangaceiros estivessem ali hospedados como convidados.
O cerco ao bando veio por  trás,onde todos estavam alojados dentro da casa-de-engenho, ao lado da casa-grande. Aos primeiros tiros, Antônio Silvino saiu correndo por entre o corredor que separa os dois prédios e com o seu rifle apoiado a uma luneta potente, mira o pelotão. Com um tiro derruba dois homens enfileirados que se aproximavam em combate.

Os dois caíram impiedosamente ao chão e já estavam mortos fazendo com que o restante da tropa se recuasse de imediato e embrenhasse no mato fechado sem deixar rastro, numa rapidez trepidante.

Baixada a poeira e cessado o fogo, o bando, vitorioso, se apressa em socorrer o feridos e contar as baixas. Além dos dois policiais, estava tombado no centro do pátio da casa da sede o cangaceiro Pilão-Deitado. O homem que, justamente na hora do ataque surpresa da volante, estava do lado de fora a cuidar dos preparativos da carne do boi naquela manhã e que seria servida no almoço que o dono da propriedade havia autorizado para os visitantes de sua fazenda de gado leiteiro e pecuário.

Nas redondezas as pessoas que moravam por mais de meia-légua nunca mais se esqueceram do zumbido das balas, que passavam perto delas, obrigando-as a deixarem seus afazeres na agricultura para poderem se refugiar em local seguro, por trás de serrotes ou dentro de suas casas.

Nesse vaivém, o sol já começa a declinar e os dois corpos continuavam prostrados no chão, embora estivessem embrulhados em esteiras de palhas de carnaúba. Faltava, porém, uma pessoa que se dispusesse a levá-los em carga de burro até a cidade de Santa Luzia.
Pilão-Deitado, o cangaceiro, fora sepultado no cemitério da Palma, distrito municipal de Caicó, com cerca de uma légua de distância do local do tiroteio.
e os dois policiais, quem os levaria para o sepulto?
Continuava o dilema, e ninguém ousava em se oferecer para a díficil tarefa.
O dia já estava perto de findar, foi ai que alguém se lembrou de Joca Ferreira.O destemido adestrador de burro brabo que pegava boi com as mãos e montava sem piedade- um verdadeiro bicho-do-mato. Sem demora, mandaram chamá-lo no sítio Umbuzeiro, vizinho á Pedreira.
Joca Ferreira não hesitou e veio ligeiro. Sem constrangimento, empacotou os dois polícias mortos, jogou-os de um lado e de outro em seu burro de carga, amarrou-os com cilha de couro cru, montou no meio dos dois cadáveres e seguiu viagem, noite adentro, no rumo de santa Luzia.
No caminho parou por mais de uma vez para beber água e qual não era a surpresa dos moradores quando lhe perguntavam o que havia naquele burro e ele respondia sem pestanejar que carregava uma carga de gente morta.
Uns incrédulos não se importavam com o que ouvira, embora outros, por medo ou superstição, batiam a porta na cara do jovem carregador de defuntos. Sem muito descansar, chegou sem medo ao destino final com sua carga mortal.
Joca Ferreira do Umbuzeiro em sua vida de cabra-da-peste, baixinho, de pernas tortas, viveu por quase 100 anos, naquelas pedreiras e veredas semi-áridas deste país tropical.
...E também quem ainda engatinhava naqueles idos e dava os seus primeiros passos era um menino franzino do sertão Pernambucano, batizado de Virgulino Ferreira, que décadas depois torna-se-ia no destemido Capitão Virgulino Ferreira ou simplesmente Lampião o rei do cangaço- cantado em prosa e verso por este Brasil de meu boi-bumbá e meio-mundo-afora.

Quanto a Pilão-Deitado, jaz em sua eterna morada da Palma, e o fogo da Pedreira entra para a história do cangaço brasileiro!

mais uma história que pesquisei antes da chegada do bando a fazenda.




Minha boa mãe, com seus 89 anos, não gostaria de saber que estou contando isso; malgrado tais fatos tenham ocorrido por volta de 1901, ela ainda teme por vingança ou prisão: conhece o sertão dos diabos. Também Ivan Lessa, jornalista auto-exilado em Londres desde a Década de 60, decerto me desaconselharia, pois, segundo ele, é perigoso contar certos fatos envolvendo poderosos no Brasil: "Aí tudo termina em tiro ou Processo", escreveu ele recentemente.

Mas a verdade é que havia meu bisavô materno no meio do caminho. João Freire de Araújo estava no roçado trabalhando com seu filho Miguel, entre Santa Luzia e Caicó, na fronteira da Paraíba com o Rio Grande do Norte, quando de repente se viu cercado pelo bando do cangaceiro Antônio Silvino. Queriam saber o caminho para a Fazenda Pedreira e o intimariam a ir levá-los até as proximidades das terras de Janúncio Nóbrega, pois eram convidados para o casamento de sua filha. Porém nada disseram de seu destino e planos na presença do menino:

- Primeiro vá deixar esse menino em casa: tem coisas que não se conversa na frente de menino!

Só quando voltou João Freire de Araújo ficou sabendo que iria levá-los até a Pedreira

- E ai do senhor se negar a servir a Antônio Silvino e sua tropa justiceira! Ou se me enganar ou trair, indo fazer cabuetagem nos ouvidos dos macacos!

- Quéisso, Coroné Antôin Silvino: é uma satisfação pra eu poder servir a um homem grande como o senhor! Não só ensino o camin da fazenda do Coroné Janúncio, como convido os senhores pra almoçar lá em casa... Guiné e galinha não faltam, e a mulher com as meninas sabem preparar muito bem. E ainda tem feijão macaça e o arroz da terra, e um jerimum que é uma delícia... Quer dizer, é comida simples, de sertanejo remediado...

Quem tem vários bois esperando não perde tempo com galinhas, nem era costume de Antônio Silvino almoçar em casa de desconhecidos, ainda mais quando estava indo ficar com uns alguns muito bem hospedado dias numa grande fazenda a poucos quilômetros dali.

Decerto que no caminho João Freire de Araújo lembrou-se do que lhe contaram sobre as frequentes visitas do cangaceiro à casa de seu parente mais abastado, o Véi Amaro do Poção. Eu não sei o que é que tem beradeiro, a quintessência do matuto, o matuto que é matuto até para o matuto, pra achar que só porque está conversando com alguém importante, já é amigo íntimo dele, e se mete a querer dar conselhos e fazer perguntas inconvenientes. Pois consta que um irmão de meu avô paterno, que minha mãe chama de Ti Zezim, empolgado ali com a conversa com os cangaceiros, certo dia saiu-se com essa na casa do Véi Amaro do Poção, parente nosso:

- Mas menino, me diga uma coisa: os senhores são pessoas tão boas, tão agradáveis... Pra quê querem essas armas? Vocês não precisam disso...

De repente se fez silêncio no recinto, cortado apenas pelo riso sem graça do berradeiro, aquele riso meio histérico tentando ser agradável de quem nota que falou besteira e não tem mais como remediar: "Rêrrêrrêrrê, rêrrêrrêrrê..."

Eis que Pilão Deitado levantou-se e dirigiu-se até o berradeiro, Ti Zezim. Ao chegar na sua frente, puxou o punhal e disse:

- A gente quer essas coisinhas porque quando encontra uma pessoa que a gente não gosta, a gente faz assim, faz assim, faz assim, faz assim e faz assim.

A cada "faz assim" de Pilão Deitado, ora de pé, ele esfregava o punhal na pele do berradeiro; primeiro no pescoço, dos dois lados, depois no abdome, dos lados, na frente e atrás, e parece que em seguida desceu pro ente pernas.

De forma que meu bisavô, que era um sábio, falava apenas quando instado a isso enquanto caminhava ao lado de Antônio Silvino e seu bando de cangaceiros. Afinal, surgiu a casa da Pedreira, e João quis voltar. O cangaceiro deu permissão, mas com uma condição quase bíblica: que ele não olhasse para trás, do contrário receberia chumbo.

A festa, dizem, foi grande. Por lá permaneceram os cangaceiros três dias, e certamente mais tempo teriam ficado se não tivesse acontecido aquilo... O Fogo!

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